Patrimônios Negros e indígenas em Guarulhos
Passado e presente em evidência
No dia 18/06/2023, a AAPAH – Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico realizou um roteiro pela cidade com uma das propostas mais ousadas: falar um pouco sobre decolonialismo e os monumentos da cidade. O roteiro “Marcos decoloniais de resistência em Guarulhos” contou com recursos via PROAC do Governo de Estado e foi realizado dentro do projeto Inventário das Obras de Artes Públicas da Cidade de Guarulhos.
A proposta se dividiu em três lugares de memórias, com um objetivo comum que os entrelaçava. Como a cidade de Guarulhos representou através de monumentos e obras de artes públicas o legado indígena e negro da cidade? O conceito escolhido para a abordagem foi o decolonialismo. De acordo com a pensadora Catherine Walsh, o processo decolonial envolve uma mudança de paradigma do pensamento ocidental, questionando as narrativas dominantes e hegemônicas que sustentam a supremacia colonial, ou seja, branca, europeia, cristã e heteronormativa. Isso implica desafiar os sistemas de conhecimento ocidentais e valorizar os saberes e perspectivas indígenas, afrodescendentes e outras vozes marginalizadas. Logo, uma pergunta que ficou no ar era por que monumentalizar o passado? Quem faz essas escolhas? Quem não participou delas?
Tendo este fio caudal, visitamos a estátua do índio Guaru, do artista Oswaldo Alves. Com cerca de 70 centímetros de altura, a obra está localizada no portão de entrada do parque Bosque Maia. Naquela manhã, escondida por caçambas de lixos do Bosque. Com referências datadas como a associação do nome Guaru aos peixinhos do rio Baquirivu, a obra cumpre a função de representar o legado indígena, porém como observado pelas pessoas presentes, de maneira estanque e idílica. O passado indígena de Guarulhos também é seu presente, como a Aldeia Multiétnica no Cabuçu comprova, trazida ali por observações de estudiosos(as/es) que participaram do roteiro.
Seguindo pelo Bosque Maia, paramos defronte a Gruta dos Orixás e seu histórico de conquista de visibilidade, mas também de vandalismo e tentativas de apagamento, demonstrando que ainda há muito trabalho a fazer de combate à intolerância religiosa. Lá, os presentes puderam se questionar sobre a importância de um espaço no centro da cidade dedicado as religiões de Matriz Africana e porque causa tanto alvoroço, a ponto de a Gruta estar gradeada por decisão da prefeitura, aliás, decisão mais fácil do que promover uma ação educativa.
Saindo do Bosque Maia, subimos ao centro histórico para fazer um roteiro a “contrapelo” da História da Cidade. Em vez de começarmos pela Matriz, escolhemos o memorial da Igreja do Rosários dos Homens Pretos. Como escrita por Aldir Blanc e cantarolada por Elis Regina, “Salve o almirante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais”, Guarulhos tem o seu exemplar de descaso com a memória negra da cidade, que vive à sombra, como a placa de metal no chão da Rua Dom Pedro II, que ninguém vê e que todos pisam.
Seguimos um itinerário de questionamento, abordando aquele entroncamento da Luiz Gama (antiga Rua 13 de Maio) com a Dom Pedro II, antigo reduto de encontro dos blocos de carnaval da cidade, até a parte baixa do antigo Cemitério São João Batista, aqueles reservados para os irmãos pretos do Rosário. Ali, a memória foi novamente transladada, quando os restos mortais dos pretos e pobres foram retirados quando da reforma do cemitério, ao contrário dos túmulos das famílias da elite Guarulhense que tiveram o direito de permanecer ali preservadas no alto da necrópole.
Chegamos ao símbolo do descaso dessas memórias. O verdadeiro ocaso do busto da Mãe Negra que ali não se encontrava mais. Diferente de tantos outros bustos, temos ali a representação de uma mulher negra. O escultor Diogenes usou como molde o rosto de uma senhora da Vila Galvão e produziu a escultura em1990, incorporando assim ao patrimônio do prédio da Antiga Câmara e compondo o importante conjunto urbanístico da Praça Getúlio Vargas. Após intervenção realizada pela prefeitura, de reforma do busto que não seguiu o padrão original, este foi vítima de ataques de criminosos que tentaram derreter a estátua de resina, acreditando ser bronze. Uma das suspeitas de ataque é de intolerância religiosa, hipótese investigada pela polícia. O fato é que a escultura não se encontra mais a vista dos transeuntes da abandonada praça.
Finalizamos o roteiro pelo centro conhecendo o Marco da Consciência Negra. Espaço dedicado a abertura da Marcha da Consciência Negra e próximo de um bem tombado pela municipalidade, a Escola Conselheiro Crispiniano. O Marco mede 3,70 metros de altura, feito de ferro cilíndrico com 40 centímetros de diâmetro, preto, e contém 13 figuras moldadas na vertical, com símbolos ideográficos conhecidos como Adinkra, dos povos Achanti, de Gana, e dos Gyaman, da Costa do Marfim. As pessoas presentes ficaram impressionadas com o simbolismo do Totem que podem ser lidos como o encontro dos contrários na consumação de algo novo. Lembramos que ali encontra-se também uma encruzilhada, importante simbologia do orixá exu, responsável por abrir os caminhos.
Nesses caminhos abertos, nos despedimos do centro e “atravessamos a ponte”, sentido bairro de Lavras para conhecermos o Ilê Axé Obá Omon Olooke ty Efon, primeiro terreiro de candomblé tombado no município de Guarulhos, por decisão unânime do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do Município de Guarulhos.
O Ilê Axé Omon Obá Olooke ty Efon foi fundado no ano de 1975 por Mãe Efigênia de Xangô. Sua importância ancestral, contudo, remonta a tempos imemoráveis. O Ilê associa-se, por seu vínculo identitário (nação Ketu – povo nagô), à casa de culto aos orixás mais antiga do Brasil, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Casa Branca do Engenho Velho), que tem sua origem em meados do século XIX e é a primeira forma de organização conhecida do culto religioso de matriz africana no Brasil ainda existente (embora já em 1680 a Inquisição – Santo Ofício[1] – tenha registrado menção a rituais realizados por africanos). Sua vinculação mais recente é ao Axé Oxumaré (Salvador/BA), conforme indica a árvore genealógica do terreiro.
A visita no espaço foi mediada por pai André, BàBá Kékeré do Ilê, e mãe Mara, Ebomi do Ilê, que mediaram uma roda de conversa no barracão principal, onde expuseram brevemente o histórico da casa, seus patrimônios materiais e imateriais, a importância do tombamento pelo município de Guarulhos, e houve muitas diálogos e explicações acerca das diversas dúvidas relacionadas às religiões de matriz africana. O Babalorixá da casa, Babá Katti de Odé, também recepcionou e saudou a todas as pessoas presentes, expressando o quão importante é para o Ilê receber sua primeira visita pública após o tombamento. Posteriormente, foi realizado percurso pela casa de axé, demonstrando alguns espaços sagrados (pejis – quartos de santos, igbás – assentamentos, Iroko – árvore sagrada etc.) e obras de arte ali preservadas (afrescos, quadros, estátua de Xangô, fonte dedicada a Oxum etc.).
Antes mesmo de receber o Ilê atual, o espaço abrigou outra casa de axé, e possui espaços conservados deste período, em destaque no processo de tombamento. Há indícios, que serão confirmados após pesquisa oral com algumas pessoas da comunidade, de que esta casa tenha iniciado seus trabalhos no território no início da década de 1970.
Foi uma visita que teve um encerramento muito afetuoso, afetivo e potente, já que muitas pessoas presentes nunca haviam visitado um Ilê (casa de axé, ou terreiro de candomblé) antes.
[1] Instituição formada pelos tribunais da Igreja Católica que perseguiam, julgavam e puniam pessoas acusadas de se desviar de suas normas de conduta.