Um manifesto em defesa dos arquivos em tempos de pós-verdade

Lobo levando ovelha pra sua própria sepultura

Razão amarrada vivendo sob tortura

Onde o fato vira ponto de vista pra eles Fala fascista vira verdade pura (Souto MC)

Como todo manifesto, este procura fazer um apelo por algo. Um apelo pela História e por quem realiza a operação historiográfica. Em tempos em que a racionalidade e a ciência passaram a ser combatidas e perderam espaço no cenário do debate público como algo necessário, as narrativas pautadas em visões ou sentimentos particulares vem ganhando mais relevância do que os fatos históricos concretos. Desse modo, defender a preservação e o acesso aos arquivos tornou-se um sinônimo de defesa da História e de uma das metodologias empregadas pelo historiador.

No último dia 31 de março, manifestantes paulistas, em frente ao Comando Militar do Sudeste, pediram intervenção militar durante o 57° aniversário do golpe civil-militar realizado no Brasil em 1964 e proferiram palavras de questionamento à “eficácia das vacinas contra a covid-19” e defenderam “o uso de medicamentos sem eficácia comprovada” (CHELLO; LARA; SARTORI, 2021) como tratamento precoce contra o coronavírus. É possível observar nessas pessoas a nítida proposta de construção de uma memória social em que esta ditadura foi branda, segura e pacífica. Contudo, ao contrário disso, os vestígios materiais desse período nos revelam um outro passado: o maior período autoritário brasileiro no pós republicanismo, marcado por mortes e pela repressão violenta aos opositores políticos e àqueles considerados subversivos.

Os chamados “arquivos sensíveis” (QUADRAT, 2013, p. 201) são fragmentos essenciais de uma História em disputa. Esses arquivos produzidos na rotina administrativa das instituições e entidades ligadas à ditadura civil-militar no Brasil, “comprovam as perseguições políticas e diferentes crimes contra a humanidade” (FONTES, 2017, p. 78) cometidos por esse regime que não respeitava o Estado democrático de direito. Desse modo, os arquivos sensíveis cumprem a missão de proteger e garantir os direitos humanos.

Para isso, é necessário viabilizar o acesso à informação contida nesses documentos. O direito de acesso à informação pública na sociedade ocidental tem como marco legal o Artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que o explicitou como um direito humano fundamental (SOUSA, 2019, p. 61). No Ocidente, “algumas medidas fundamentais implantadas pelos últimos governos democráticos foram úteis para enfraquecer o monopólio do Estado sobre a memória e a história nacional, ao legitimar o acesso público aos acervos da ditadura” (PELEGRINE, 2017, p. 136).

No caso brasileiro, a discussão e a luta pela “justiça de transição” justamente ganham forças com a abertura dos arquivos da ditadura civil-militar, assim como com a criação de comissões da verdade, com o intuito de apurar as violações dos direitos humanos e os crimes cometidos pelos agentes do Estado através de um conjunto de medidas adotadas para que esses fatos de um passado violento e autoritário não venham a ser esquecidos ou repetidos (FONTES, 2017, p. 78). Por isso, é que “as instituições arquivísticas são fundamentais para a sociedade. Elas guardam e oferecem indícios, quase sempre dispersos, mas valiosos, sobre quais lutas contribuíram para a formação do nosso tempo. Nelas, estão guardadas as disputas pela história” (ROCHA, 2019, p. 106).

Apesar da “justiça de transição” ter o seu desenvolvimento iniciado desde os anos 1990, foi apenas no começo do século XXI que a ela “ganhou papel de destaque no cenário internacional, quando a própria Organização das Nações Unidas (ONU) passou a dar centralidade a conceitos como “direito de saber”, “dever de lembrar”, “direito à memória” e “direito à verdade”” (PEDRETTI, 2017, p. 64). No Brasil, a “justiça de transição” não conseguiu punir criminalmente os torturadores durante a ditadura civil-militar devido a uma trava jurídica denominada Lei da Anistia, “que desconstituiu os crimes praticados pelos agentes públicos do Estado militar contra os opositores políticos, violando o sistema internacional de direitos humanos (PELEGRINE, 2017, p. 136).”

Segundo Ayala Rodrigues Pelegrine (2017, p. 136-137), a Lei de Anistia instituiu, direta ou indiretamente, uma “política oficial de esquecimento”, que reforçou o “estado de amnésia coletiva provocado pela ignorância da história e pelo monopólio do Estado sobre a memória social” na sociedade brasileira. Um passo importante para o enfrentamento disso, foi a quebra do sigilo, imposto pelos próprios militares, dos “arquivos sensíveis”. Ao se tratar a informação pública — uma vez que foi produzida por uma entidade do Estado — como um bem público (PELEGRINE, 2017, p. 137), isso acaba contribuindo, de forma direta, para “o conhecimento social, para o resgate e para a reparação histórica, reforçando garantias nacionais e internacionais dos direitos reservados a cidadãs e cidadãos” (HORTA, 2019, p. 111).

Com a regulamentação do acesso aos documentos do arquivo desse regime autoritário em tempos democráticos, o falseamento da História, como o negacionismo de que houve uma ditadura civil-militar no Brasil, não se sustenta (SILVEIRA, 2017, p. 129) em relação a materialidade dos fatos, pois não é possível contorcê-los ou contorná-los. Portanto, os arquivos funcionam como um “espaço de refinamento e sobrevivência da verdade fática (SILVEIRA, 2017, p. 129)”, o que permite ao historiador persegui-la e operacionalizá-la ao ponto de arrancar os seus dados como uma confissão, após cumprir as tarefas exigidas pelo método, que seria a forma mais adequada de proceder perante a um conteúdo histórico específico (GRESPAN, 2011, p. 292-293).

Os arquivos também são lugares de guarda de segredos e de resgate das vozes silenciadas pelo discurso oficial do vencedor, carregado de intenções particulares e de poder (HORTA, 2019, p. 111). Por meio da pesquisa empírica da documentação do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS), disponível para consulta no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), os historiadores e demais cientistas sociais, ao lerem a contrapelo as fontes oficiais da ditadura civil-militar, conseguiram identificar resquícios e até confidências daqueles agentes do Estado que cometeram crimes e/ou apoiaram a violação dos direitos humanos.

De acordo com Heloísa Liberalli Bellotto (2006), os documentos de arquivos podem nos servir como prova e testemunhas de um passado devido a sua imparcialidade e autenticidade, uma vez que eles foram gerados e acumulados naturalmente no transcorrer da rotina administrativa e das demais ações promovidas pela sua entidade produtora, sem que houvesse uma intencionalidade de utilizá-los na posterioridade. Desse modo, em concordância com Fernando Atique (2020, p. 121), “não é impossível fazer história sem arquivos, mas é impossível que esta história seja cientificamente relevante.”

Logo, para que a construção de uma história que conteste o discurso oficial do Estado ou de quem o controlava seja possível, há a necessidade de se derrubar projetos de lei como a PL Nº 7.920/2017, do senador Magno Malta, que legalizaria a “eliminação de documentos arquivísticos originais, após sua digitalização e arquivamento em mídia ótica ou eletrônica” (SUGIMOTO, 2017). Contudo, o Projeto de Lei “Queima de Arquivo” não prevê a possibilidade de que arquivos digitalizados sejam passíveis de manipulações e/ou alterações de suas informações, abrindo margem para que essas fontes históricas percam as suas qualidades enquanto documentos de arquivo. Dessa maneira, apenas a materialidade dos documentos físicos e a sua organicidade poderiam comprovar a legitimidade de suas versões digitais.

Para a garantia disso, é preciso que a administração pública realize investimentos na gestão documental de suas instituições de custódia. Segundo Antonio Gouveia de Sousa (p. 62), apenas as práticas arquivísticas vinculadas à gestão de documentos, como a organização, preservação, disponibilização e recuperação dos mesmos poderiam assegurar o acesso à informação e a transparência pública. Ainda que a Lei de Acesso à Informação (Lei N° 12.571/2011) tenha entrado em vigor em 2012, a sociedade civil precisa continuar se engajando, enquanto uma reivindicação de cidadania, para que o seu direito de acesso aos documentos públicos não encontre um fim.

Tendo em vista que investir na estrutura dos arquivos públicos é um fator essencial para que a população local conheça o seu passado, o município de Guarulhos não pode ser tratado de forma diferente. O Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos requer um quadro estável de funcionários, um espaço com condições adequadas para abrigar a documentação histórica da cidade, uma ampliação qualificada de seu corpo técnico e um investimento na construção de mecanismos de consulta e de políticas de difusão para que nós historiadores da História local possamos melhor continuar desconstruindo a narrativa oficial elitista e excludente criada pela Comissão do IV Centenário de Guarulhos por meio da materialidade das fontes arquivísticas, conciliadas com outros métodos de se fazer História.

Fontes e Referências Bibliográficas:

ATIQUE, Fernando. Arquivos são imprescindíveis nos discursos contidos nas pedras das cidades. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano V, Nº 10, p.119-121, 2020;

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamentos documental. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006;

CHELLO, Marcelo; LARA, Matheus; SARTORI, Caio. Em atos esvaziados pró-golpe de 64, manifestantes pedem intervenção militar. UOL. 30 mar 3021. Cotidiano. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2021/03/31/em-atos-esvaziados-pro-golpe-de-64-manifestantes-pedem-intervencao-militar.htm >. Acesso em 29 abr 2021.

FONTES, Milena Fonseca. Desvendando os arquivos para estabelecer a justiça. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano II, Nº 5, p. 77-90, 2017;

GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, p. 111-154, 2011;

HORTA, Filipe Moreno. Arquivos: conhecimento social, garantia de direitos e resistência. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano V, Nº 9, p.103-112, 2019;

PRDRETTI, Lucas. Silêncios que gritam: apontamentos sobre os limites da comissão nacional da verdade a partir do seu acervo. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano II, Nº 5, p. 62-76, 2017;

PELEGRINE, Ayala Rodrigues Oliveira. Ditadura militar e universidades: a importância do acesso aos arquivos da repressão política.

Revista do Arquivo. São Paulo, Ano II, Nº 5, p. 135-143, outubro de 2017. ROCHA, Fábio Dantas. Os arquivos guardam verdadeiras disputas pela história. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano V, Nº 9, p.103-112, 2019; SILVEIRA, Rodrigo Dias. Arquivos: Memória e construção dos direitos humanos e porvir democrático. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano II, Nº 5, p. 123-134, 2017; SOUSA, Antonio Gouveia de. Arquivo, democracia e acesso à informação pública: breve panorama da experiência internacional. Revista do Arquivo. São Paulo, Ano V, Nº 9, p. 60-71, 2019;

SUGIMOTO, Luiz. Arquivistas reagem a projeto de lei que prevê eliminação de originais. Jornal da Unicamp. 11 ago 2017. Notícias. Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/08/15/arquivistas-reagem-projeto-de-lei-que-preve-eliminacao-de-originais >. Acesso em 29 abr 2021.

QUADRAT, Samantha Viz. Em busca dos arquivos das ditaduras do Cone Sul: desafios e perspectivas. In: ARAUJO, Maria Paula, FICO, Carlos, GRIN, Monica. Violência na História: Memória, Trauma e Reparação. Rio de Janeiro: Editora Ponteio, 2013.

Compartilhe nosso conteúdo com seus amigos!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *