O avesso do avesso na gestão do Patrimônio Cultural de Guarulhos

Na metade do século XX, o cantor e compositor Caetano Veloso escreveu “Sampa”, uma das mais marcantes letras da música popular brasileira, que provoca o nosso olhar para os muitos paradoxos urbanos e tem entre seus versos marcantes “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas, Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Caetano talvez não imaginasse um outro nome para batizar a música. Para os dias de hoje, “Sampa” até poderia se chamar “Guaru” ou “Gru”, especialmente para os mais jovens. A insistência com que o atual Governo Guti permite que se destruam as coisas belas na nossa cidade, assim como decisões avessas ao interesse público que parece sempre se sobrepor. Pois bem, falaremos da Praça Getúlio Vargas.

Praça Getúlio Vargas patrimônio cultural de guarulhos
Foto tirada em 2015. Acervo: AAPAH/Bruno Leite de Carvalho.

Não é desconhecido que o prefeito ignorando a força da lei, o chamado Plano Municipal de Cultura, respondendo uma ânsia (justa) de segurança pública na Praça mais célebre de nossa cidade, colocou um destacamento da Guarda Civil Metropolitana com poucos servidores, uma academia e algumas motos guardadas em salas que deveriam ser usadas para atividades culturais. Local de eventos marcantes na história, inúmeras festas, lugar de memória de decisões políticas da cidade, a Praça Getúlio Vargas é um espaço urbanisticamente perfeito.

Não de outra forma, a praça encontra-se tombada desde o ano 2000 em todos os seus elementos constitutivos. Lá se encontra o monumento da IV Centenário de 1960, o busto da Mãe Negra do nosso artista Diógenes, um espécime de Pau-Brasil, um prédio de arquitetura eclética, mas com marcantes referencia brutalistas e que funcionou a antiga câmara, a fonte luminosa cuja foto ilustra essa matéria e o coreto onde comícios políticos foram organizados. Lembra-se também das apresentações da Orquestra Sinfônica de Guarulhos que inebriavam os ouvidos com peças clássicas de Haydn, Mozart e Villa-Lobos.

Essa praça mesmo com o destacamento de guardas, aparenta ainda estar mais abandonada. Mais: como parte de uma conhecida paisagem urbana temos pessoas, alguns moradores de ruas – outros não – se misturando na cena que compõe o espaço, fazendo de lá o seu locus de moradia, divertimento ou renda, renegados a uma subclasse da cidadania. Assim como a praça, encontram-se essas pessoas abandonadas também pela prefeitura com nenhuma política séria de atendimento e acolhida.

Como a entrada do destacamento da GCM, o atual governo Guti prefere fazer medidas que higienizem (ou ´eugenizem´?)o espaço. Isso fica claro no Memorando n.271/2022 – GS – Praça Getúlio Vargas encaminhado pelo o Secretário de Administração Regional, Bruno Gersosimo ao conselho de Patrimônio Histórico.  No memorando como forma de remediar o problema social urgente e a questão de preservação do patrimônio cultural subsequente, se propõe de forma risível e arbitrária a remoção da fonte luminosa e dos bancos da praça, pois como diz o secretário abaixo:

como fato é público e notório, a fonte existente ultimamente vem servindo aos moradores de rua e usuários de droga, fazerem o uso dela de forma totalmente irregular e inadequada, tanto que utilizam como banheiro e quando em funcionamento para tomarem banho

O avesso aqui é acreditar que um jardim de gosto duvidoso, ao substituir a fonte propositalmente abandonada possa impedir ou servir as pessoas ali. O avesso do avesso é ainda não vir aqui prenunciada uma alternativa digna de acolhida a essas pessoas, mas apenas o desejo de “retirá-las”

Com relação os 43 bancos históricos de granilite, doados por famílias da elite guarulhense na década de 1960 e que se encontram na sua maioria absoluta em bom estado, mas com as marcas do tempo e necessitadas de ações de conservação?

– Em razão ao precário estado de conservação dos bancos existentes na Praça Getúlio Vargas e, sem ao menos a possibilidade de restauro, dado ao tempo em que estes foram confeccionados e estão ali instalados, PROCEDERMOS A SUBSTITUIÇÃO DELES.

O avesso do avesso do avesso é perceber uma secretaria incapaz de fornecer uma resposta técnica de construção (granilite) que ainda é usada ou mesmo oferecer uma alternativa que não obedeça aos princípios das técnicas de restauro que se manifesta inclusive em lei na nossa cidade (6573/2009), ou seja, em que o restauro em qualquer bem tombado pelo municipalidade deve seguir um dos princípios da intervenção: mínima, da reversibilidade, da compatibilidade, da neutralidade ou da compatibilização de novos usos com a importância do bem. Sobra no memorando o nome de “bancos modernos” junto a um novo princípio que está subliminar: incapacidade técnica.

Pois bem, de contraponto ao memorando se torna jocosa e piadista o slogan da atual gestão que diz “Guarulhos: todo mundo passa por aqui”. Sobre a substituição da histórica fonte:

– Que seja a Fonte revertida numa grande floreira, de forma a alegrar e agregar com todo o paisagismo que será executado, onde será elaborado também a logo marca de Guarulhos, conforme projeto em anexo.

A sugestão de Aporofobia é óbvia, ou seja, o termo cunhado da filósofa Adela Cortina em que a prática de manter os pobres longe dos olhos de todos se manifesta, de maneira perversa, supondo que a mera substituição de uma fonte por jardins que trouxessem “alegria” poderia sumir com essas pessoas. Colocar um destacamento da GCM em um equipamento da cultura não ajudou. Fazer política de maneira séria, humana e respeitando alguns princípios legais, como o Plano Municipal de Cultura, ajudaria.

Ao Governo Guti e sua incapacidade de olhar para cidade através de pactos mínimos firmados, soma-se agora formação de um Termo de Ajustamento de Conduta sobre o uso da praça. Novamente, a incompetência dos seus órgãos obriga assim uma nova ação judicial contra essa proposta de “restauro” da Praça Getúlio Vargas. E a música do Caetano Veloso fica aqui na cabeça

E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

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