O Cemitério São João Batista: um marco de classe em Guarulhos

Ao retornar para o período paleolítico, podemos observar que o indivíduo já demarcava um respeito pelos mortos, uma vez que estes foram os primeiros a ter um abrigo permanente em meio a um amontoado de pedras em uma caverna (CARRASCO; NAPPI, 2009, p. 54). A fixação dos sepultados em um espaço específico, iria possibilitar o retorno de grupos nômades, periodicamente, a esses lugares para compartilhar momentos com os seus espíritos ancestrais, assim como evidenciando a “necessidade de depositar o cadáver em algum lugar seguro, devido ao problema causado pela decomposição dos corpos” (ARAÚJO, 2006, p. 31).

O historiador Thiago Nicolau de Araújo (2006), ao analisar os primeiros povos tidos como “civilizados”, no contexto de origem das necrópoles, apresenta um indivíduo que antes adorou os mortos ao invés de um Ente Supremo, pois nesse momento a figura da morte era o grande mistério da humanidade. Tendo isso em vista, havia um grande respeito e veneração pelos mortos, expressando-se na tentativa de preservar os corpos por meio do processo de inumação (ARAÚJO, 2006, p. 29-31). Araújo irá constatar “que já na antiguidade clássica, existiam empresas funerárias para apoiar a família, na hora do luto, como vemos nos ritos de sepultura. O poeta Virgílio termina a narração dos funerais de Polidoro por estas palavras: “Encerramos a alma no túmulo” (ARAÚJO, 2006, p. 29).

Com o advento das necrópoles, Araújo revela que o culto aos mortos passa a tomar um lugar específico no mundo ocidental, uma vez que dentro destas estruturas funerárias os familiares “colocavam-se pastéis, frutas e sal, e se derramava em suas superfícies leite, o que caracterizava o culto no próprio túmulo” (ARAÚJO, 2006, p. 32-33). A partir disso, o autor entende que o túmulo “passou a fazer parte das propriedades da família do morto, sendo um local de rituais e de preservação da memória do falecido” (ARAÚJO, 2006, p. 33). Portanto, avistamos um possível embrião do culto para os parentes mortos em que se buscava a preservação da memória, mas também a temiam a sua vingança, pois “um morto abandonado, tornava-se infeliz” (ARAÚJO, 2006, p. 33).

A datar do século IV-V, da era cristã, em diante, a sociedade ocidental da época criou o costume de enterrar os mortos nas Igrejasou no seu entorno para ficar próximo aos santos, que iriam proteger os seus entes queridos (CARVALHO, 2008, p. 161). O termo cemitério “vem do grego “koumetérion” que significa “eu durmo” e do latim “coemeterium” que designa “lugar onde se descansa” (CARVALHO, 2008, p. 161).

Surgimento dos cemitérios

Com o surgimento dos cemitérios, “propriamente ditos, em plena Idade Média”, é possível notar-se a distinção de castas sociais pelo destino dado a diferentes sepultados, uma vez que os mortos de categoria eram enterrados no interior das Igrejas Católicas, enquanto os pobres e indigentes nos adros, dentro dos limites das paróquias (ARAÚJO, 2006, p. 36). Sendo assim, foi sob influência do cristianismo, emana este novo lugar de descanso depois da morte, no qual os fiéis iriam aguardar o soar das trombetas celestiais do Juízo Final em Campos Santos, que a partir do fim do século XIX, segundo Giovana Carla Mastromauro, este local deveria ser “belo e impressionante e sendo a morada eterna, deve ter belas edificações, que conte a através de sua arquitetura de mármore e pedra, a história de cada família; que seja uma […] réplica da cidade, uma cidade dentro de uma cidade reproduzida e fundada pela hierofania. Funda-se um novo espaço na cidade, longe do turbulento centro, (onde) refugiam-se os mortos” (MASTROMAURO, 2008, p. 94).

De acordo com a Glaucia Garcia Carvalho (2008, p. 162), o surgimento dos cemitérios no contexto brasileiro se deu baseado em teorias higienistas, que passaram a exigir a transferência dos corpos sepultados para locais distantes dos centros urbanos e separados dos templos religiosos por motivos de higiene e saúde, a partir de uma recomendação realizada D. Maria de Portugal, em 1789, ao bispo Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, do Rio de Janeiro. Nesta recomendação, indicava que estes espaços mortuários fossem construídos segregados das igrejas – algo que apenas foi começar a acontecer 27 anos depois. Apesar de uma forte resistência dos praticantes da fé católica no Brasil devido a recomendação interferir no modo de inumação dos mortos, além da reza em missas de finados e o cortejo fúnebre, a carta-régia do príncipe D. João, em 1801, reiterou a recomendação D. Maria de Portugal e o apelo dos fiéis não foi acatado (CARVALHO, 2008, p. 162).

Levando em consideração esta decisão imperial – que seria replicada em tempos republicanos pelos governos locais e estaduais no século XIX – e na alteração de hábitos considerados anti-higiênicos e imorais da população, na Província de São Paulo para que houvesse a execução de projetos de construção de espaços mortuários públicos com o intuito de “reordenar o espaço sagrado criando dessa forma um zoneamento urbano, visando a separação entre os vivos e os mortos” (MASTROMAURO, 2008, p. 93) foi proposto, assim, o isolamento deste espaço da sociedade cotidiana com muros de até 10 metros de altura. Conforme revela Mastromauro, “o primeiro Cemitério Público inaugurado na cidade em 1854 foi o da Consolação. Este local, antes da inauguração oficial, seria usado na epidemia de varíola que assolou a cidade de São Paulo. O engenheiro Carlos Frederico Rath, que era o administrador do Cemitério dos Protestantes da Luz, sugeriu então um local que considerava apropriado para a implantação deste cemitério público, o Alto da Consolação, no caminho para Sorocaba, pois se tratava de uma área distante do núcleo urbano e onde os ventos sopravam em direção contrária à cidade” (MASTROMAURO, 2008, p. 95).

Vista área do Cemitério São João Batista. Sem data. Acervo: Arquivo Histórico Municipal Araci Borges.

Cemitério São João Batista e suas modificações

Nesta mesma metade do século XX, o Cemitério São João Batista, localizado na rua Felício Marcondes, n. 320, na região central de Guarulhos (SP), foi inaugurado em 1889 sem muros. De acordo com Glaucia Garcia de Carvalho, em uma entrevista concedida para um jornal local, a escolha de instalar este cemitério nesta localização “foi estratégica, (pois) ele está entre as igrejas Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (demolida na década de 1930 para a passagem de veículos nas imediações) e a Nossa Senhora da Conceição, a Matriz” (FOLHA METROPOLITANA, 2011, p. 4). Isso demonstra um vínculo simbólico com o catolicismo e de que a discussão realizada em São Paulo sobre a necessidade de se construir um zoneamento urbano preocupado com a questão sanitária não havia efetivamente chegado em Conceição de Guarulhos – recém elevado ao título de vila, após a sua emancipação de São Paulo em 24 de março de 1880. O problema sanitário, envolvendo os espaços fúnebres da vila, foi retrato no conto “O Cadáver Bexiguento”, de Adolfo Vasconcelos Noronha, que conta o caso do cadáver de um negro escravizado que contraiu o mal da bexiga.

Outro aspecto importantíssimo que mostra uma ligação deste cemitério com a religião católica são os ornamentos e as artes tumulares presente neste espaço mortuário, que, segundo Carvalho, eram semelhantes a outros cemitérios da capital de São Paulo, como o Cemitério da Consolação (JORNAL BOM CLIMA, 2005, p. 4). Isso possibilita identificar a presença de uma elite econômica local sepultada neste cemitério, que apresentavam condições financeiras de pagar pelos serviços funerários e relacionados a construção dos jazigos e pequenos mausoléus com o selo de marmorarias de São Paulo.

Este espaço mortuário, que era dividido entre parte baixa e a outra alta (FOLHA METROPOLITANA, 2011, p. 4), foi tombado como patrimônio histórico pela lei municipal nº 3.642/90, de 07 de agosto de 1990 (SOUZA, 2011, p. 13), na qual procuram fundamentar limites com o intuito de proteger e garantir direitos e interesses da sociedade local. Contudo, este marco histórico da cidade, inaugurado em 1889 (CARVALHO, 2006, p. 3), devido ao seu terreno ter sido doado por um empreendedor da cidade chamado Francisco Antunes [1] (CARVALHO, 2006, p. 14), posteriormente, foi tombado novamente no dia 06 de junho de 1995, pelo decreto n. 19041/95, como patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico de Guarulhos, por estar ligado às questões culturais do município (SANTOS, 2011, p. 15). Este cemitério possui cerca de 16 quadras com novecentos e oitenta e seis indivíduos sepultados em uma extensão de 3.423,30 m², segundo os dados técnicos apresentados por Glaucia Garcia de Carvalho (2006, p. 9), ex-coordenadora do Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos.

            Todavia, o Cemitério São João Batista durante a década de 1920 iria sofrer duas importantes reformas do seu espaço mortuário para mais de 10 mil m² (SANTOS, 2011, p. 5). Apesar das queixas da população local e dos religiosos católicos em sepultar os seus mortos distantes dos santos e das paredes internas das Igrejas, no ano de 1924 este cemitério foi ampliado e os seus muros erguidos ao redor do complexo funerário, pois até então o cemitério era aberto (CARVALHO, 2006, p. 14). Em 1928, ocorreu a segunda reforma em que o Cemitério São João Batista sofreu um acréscimo à frente da Rua João Gonçalves, no qual este espaço mortuário era destinado para os sepultamentos das classes pobres (CARVALHO, 2006, p. 14).

            Na década de 1960, segundo Aldenis Neres dos Santos (2011), o Cemitério São João Batista volta a ser alvo de discussão no município de Guarulhos. Contudo, não mais algo relacionado à esfera da saúde ou de discurso sanitarista, mas como um elemento de entrave para o progresso. Conforme aponta Santos (2011, p. 12), a dar continuidade ao projeto urbanístico do ex-prefeito Fioravante Iervolino – que se baseava nos centros urbanos da Europa, a qual passou a ser a sua inspiração após sua viagem ao continente visando padronizar a pavimentação da cidade -, o prefeito de Guarulhos, Mario Antonelli, eleito em 1961, deu início ao processo de desativação do Cemitério São João Batista com o intuito de construir uma praça pública em seu lugar. De acordo com Antonelli, este espaço mortuário estaria atrapalhando o desenvolvimento econômico/comercial da cidade, que vivia um período de grande crescimento demográfico e do setor industrial desde o ano de 1953, quando o então prefeito do município, Rinaldi Poli, que a fim de acelerar a industrialização local, criou o plano de isenção tributária para empresas que investissem na região (SANTOS, 2011, p. 13).

            Conforme aponta o n. 52 do Jornal Bom Clima (2005, p. 4), em uma matéria jornalística intitulada Centro “engoliu” o cemitério, a remodelação do Cemitério São João Batista teve o seu início das transferências dos sepultados pela sua parte baixa [2], onde se localizavam as sepulturas das pessoas pobres (CARVALHO, 2008, p. 164), para o cemitério São Judas Tadeu no bairro do Picanço. “Quando a remoção (dos sepultados) atingiu a parte alta do “São João Batista”, onde ainda hoje existem túmulos de famílias tradicionais, de industriais, de empresários, o projeto foi abortado” e “alguém gritou: Parou aí!” (JORNAL BOM CLIMA, 2005, p. 4). De acordo com Carvalho (2008, p. 164) se não fosse a resistência das famílias tradicionais locais em 1965, o Cemitério São João Batista teria sido totalmente destruído.

Durante a década de 1970, de acordo com o levantamento realizado, houve uma última investida do setor público de Guarulhos a respeito deste espaço mortuário, por meio do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. Em seu planejamento, o Cemitério São João Batista viria a ser demolido com a intenção de dar lugar às novas pistas para o tráfego humano e de veículos na região comercial da cidade e, dessa maneira, os sepultados seriam transferidos pela prefeitura para os cemitérios municipais no bairro do Picanço e do Vila Rio (GUARU NEWS, 1972, p. 13). No entanto, apesar do planejamento do sistema viário ter sido aprovado pelos vereadores na Câmara Municipal Legislativa, no que se referia a demolição total do cemitério, era necessário tramitar e aprovar um projeto de lei específico para consumar esta vontade do poder público (GUARU NEWS, 1972, p. 13).

Com isso, o presidente da Câmara na oportunidade, Oswaldo Celeste, redige o projeto de lei n. 63/72, que diz: “para a execução de obras de interesse ou utilidade pública, fica o Executivo Municipal autorizado a praticar os atos necessários à extinção do Cemitério São João Batista” (GUARU NEWS, 1972, p. 13). Ao ser levado à plenária para votação, em 22 de agosto de 1972, o seu redator proferiu ataques ferozes direcionados para dois vereadores que não concordaram com este projeto de lei. Devido a pressão dos colegas parlamentares, o proponente se viu obrigado a retirar o projeto da discussão. Isso evidencia, mais uma vez, que a classe política guarulhense resistiu a retirada dos sepultados da região central da cidade e da demolição deste espaço funerário.

Portanto, é possível pensarmos o Cemitério São João Batista como um lugar de memória, conforme aponta Pierre Nora (1993). Um lugar social criado entre a materialidade dos 302 exemplares tumulares espalhados numa área mortuária localizada no centro da cidade e defendido pelas famílias tradicionais e, em parte, pela elite político-econômica guarulhense. Desse modo, o cemitério se torna mais um marco, além dos nomes de escolas e vias públicas em diversos bairros do município, da presença e da interferência desses grupos no cotidiano e na memória da História de Guarulhos.

Notas de Rodapé

[1] Em troca por ter doado o terreno à prefeitura, Antunes recebeu, de acordo com Carvalho (2006, p. 14) um jazigo na quadra 15 e uma placa de gratidão da Câmara de Vereadores datado em 20 de novembro de 1924.

[2] Esta parte baixa do cemitério que foi extinta abriga atualmente a biblioteca Monteiro Lobato, o Ambulatório da Criança e o Serviço Funerário Municipal, onde funcionava o almoxarifado da Prefeitura de Guarulhos.

Fontes

Centro “engoliu” o cemitério. JORNAL BOM CLIMA. Guarulhos, 4ª semana de Julho/2005, p. 4-5. Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos;

Cemitério São João Batista: a história de Guarulhos entre jazigos e estatuetas. FOLHA METROPOLITANA. Guarulhos, 18 set 2011, p.4. Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos;

Os mortos contam nossa história. JORNAL BOM CLIMA. Guarulhos, 4ª semana de Julho/2005, p. 4-5. Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos;

Progresso quer tomar o lugar de um cemitério. GUARU NEWS. Guarulhos, 10 a 16 out 1972, p. 13. Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos.

ARAÚJO, Thiago Nicolau de. Túmulos celebrativos de Porto Alegre: múltiplos olhares sobre o espaço cemiterial (1889-1930). – Dissertação de Mestrado (parcial). Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2006.

Referências Bibliográficas

CARRASCO, Gessonia; NAPPI, Sérgio. Cemitérios como fonte de pesquisa de educação patrimonial e de turismo. Museologia e patrimônio, v. 2, n. 2, p. 46-60, 2009;

CARVALHO, Glaucia Garcia de. Cemitério São João Batista. Memória e Preservação. Guarulhos: FunCultura da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Guarulhos, 2006;

CARVALHO, Glaucia Garcia. Memória e preservação. O Cemitério São João Batista como fonte histórica. Guarulhos tem História: Questões sobre História Natural, Social e Cultural/ Elmi E. H. Omar (org). São Paulo: Ananda Gráfica e Editora, p. 161-166, 2008;

MASTROMAURO, Giovana Carla. Urbanismo e salubridade na São Paulo Imperial: o Hospital de Isolamento e o Cemitério do Araçá.- Dissertação em Mestrado em Urbanismo. Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Campinas: Campinas, 2008.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. n. 10, 1993.

SANTOS, Aldenis Neres dos. Cemitério São João Memória e Desenvolvimento – Guarulhos – Monografia (Trabalho de Conclusão em Licenciatura do Curso de História). Faculdades de Ciências Humanas Saúde e Educação de Guarulhos: Guarulhos, 2011;

SOUZA, Moacir de. Guia de Educação Patrimonial. Guarulhos História, Cultura e Meio Ambiente. Guarulhos: Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos, 2011.

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