Carnaval… salve Nhô Quim de Ferro
A presença negra na história de Guarulhos se manifesta de muitas formas: pela religiosidade, pelo trabalho, pela cultura, pelo esporte, etc. A existência das irmandades negras no território guarulhense revela ao pesquisador contemporâneo por meio da história de seus personagens como se entrelaçavam os laços de fraternidade, cujos muitos eixos de articulação podiam ser a família, o trabalho, o próprio culto, entre outros. É conhecida a história da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e sua triste demolição na década de 30. Porém, vamos tratar de um personagem que devido a sua longevidade ficou registrado. Trata-se de Joaquim do Espírito Santo ou Joaquim Antônio dos Santos, conhecido pelo apelido de Nhô Quim de Ferro, da Fazenda do Bananal, que morreu no começo do século XX, aos 107 anos.
Uma das fontes históricas que fazem referência ao personagem são duas fotos antigas do acervo da família Almeida Barbosa, relacionadas a uma visita de Nhô Quim de Ferro e sua família à Aparecida do Norte. No verso delas existem anotações baseadas em pesquisa e, provavelmente, feitas por Silvio Barbosa que nos fornece valiosas informações sobre Nhô Quim.
Conforme observado nas anotações no verso da foto, a identificação de Nhô Quim de Ferro está ligada à Fazenda Bananal. Filho da escrava Josepha, matriculado sob o número de 1.580 na relação de escravos. Segundo esse documento Josepha pertencia ao Dr. João Álvares Bueno e posteriormente à sua irmã, Brígida Maria Castro esposa de José Almeida Barbosa, patriarca da Fazenda Bananal. A lei do ventre de livre de 1871 não alcançou o nascimento de Nho Quim de Ferro, se tornando assim escravizado pelo sistema jurídico da época.
O registro fotográfico retrata o senhor Joaquim e sua esposa, a senhora Ana de Castro, com uma criança, talvez sua neta, e um casal de jovens ao fundo acenando, talvez seus filhos. Outra informação contida no verso é sobre a longevidade de Nhô Quim, 107 anos, e de sua esposa, 98 anos. Nessa mesma fonte temos a indicação de que o casal estaria enterrado no Cemitério São João Batista, fazendo referência ao pertencimento deles as irmandades, tida no documento como dos “escravos”.
O cemitério existe até hoje no Centro de Guarulhos. Entretanto, a parte baixa, pertencente às irmandades negras foi desapropriada no início dos anos 1960 e os restos mortais ficaram no ossário geral, próximo ao cruzeiro, ou foram transladados para o novo cemitério no bairro Picanço, então periferia de Guarulhos.
Nhô Quim de Ferro após abolição, além de conceber toda uma família, viveu livre pelo seu trabalho. Ser enterrado na ala da irmandade revela uma participação ativa na confraria de Guarulhos. Possivelmente, Nhô Quim de Ferro trabalhou na construção da nova Igreja do Rosário como evidenciam outras imagens.
Em relato de memória, um dos principais fotógrafos da cidade, Massami Kishi, escreveu sobre Nhô Quim de Ferro e dos serviços contratados para o destocamento de mato num terreno arrendado próximo ao Ginásio Fioravante Iervolino em 1936. Seguindo o relato, Kishi diz que encontrou Nhô Quim de Ferro no carnaval de 1937, na rua Dom Pedro II, fantasiado de mulher. Publicamos recentemente uma notícia deste Carnaval, fazendo referências aos bailes de clubes e a festas de rua.
Ao encontrá-lo e com a intenção de cobrar o serviço não realizado, Kishi escreveu que o seu Joaquim sumiu no meio da multidão. Pulando para o ano de 2023 e as voltas a celebração da mais popular das festas, lembramos sempre que o carnaval não é o melhor momento para realizar cobranças, tanto mais de um trabalhador LIVRE. Mais: o relato de Kishi também denota um traço de racismo estrutural em texto que preferimos não trazer à tona. Esses indícios revelam um pouco desse personagem da nossa cidade que viveu mais de 100 anos. Talvez um dos primeiros foliões que se tem notícia. Fantasiado de mulher e alegre no meio da multidão. Salve Nhô Quim de Ferro!
Fonte: Casa da Candinha – Ruptura e Metamorfose: Da Casa Grande a Centro de Memória das Culturas Negras, de Elmi El Hage Omar