Um olhar para as histórias LGBTI+ de Guarulhos
A breve trajetória do grupo Libertos de Guarulhos(1979 – 1981)1
Neste mês do orgulho, a AAPAH – Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico, pretende com esse artigo, revisitar e refletir sobre as histórias LGBTI+ de Guarulhos.
Iniciado por volta da segunda metade dos anos 1970, o movimento homossexual no Brasil se inicia num momento “abertura política” no Brasil, ainda no período da Ditadura Civil-Militar (Facchini, 2003, p. 84) . Em Guarulhos, pelo menos neste período e no decorrer dos anos 1980, são pouco conhecidos e documentados a atuação de grupos em prol dos direitos dos homossexuais. Podemos dizer até mais do qure isso: pouco tem se escrito sobre a história do movimento homossexual da cidade, sua forma de atuação, circulação e mobilizações e agentes envolvidos. A historiografia local pouca atenção tem dado ao tema, sendo possível dizer, no limite, que a história LGBTI+ de Guarulhos está sofrendo um silenciamento sem precedentes.
Esse breve artigo não busca esgotar o tema e sim quebrar o silenciamento a partir da atuação desse grupo. De alguma forma, possibilitar um debate e mostrar que a cidade tem uma história do movimento LGBTI+ que necessita ser contada. Para isso, trataremos da história do grupo Libertos de Guarulhos, grupo esse de breve duração, mas que se destacou como um importante grupo pelo direito dos homossexuais. Para isso, usaremos o Jornal Lampião da Esquina, importante periódico do período para reconstruir uma parte da atuação do grupo, além de documentos do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/UNICAMP) e do Centro de Documentação Prof. Dr. Luiz Mott – (CEDOC LGBTI+), duas instituições de referência na guarda de documentos relacionado ao movimento homossexual no Brasil. Às fontes textuais nesse caso são bem escassas e destacamos que pesquisas futuras, com o uso por exemplo da metodologia de História Oral possibilita no futuro, trabalhar com as memórias LGBTI + da cidade e trazer novas contribuições sobre o tema.
O Libertos de Guarulhos nasceu entre o final dos anos 1970 e 19802, a partir da iniciativa de jovens operários e universitários da cidade. Esse grupo, como aponta a pesquisa de Rafael de Souza (2013), tinha como principal plataforma, a união conjunta entre o operariado e homossexuais é formado por esses estudantes, descontentes com o tratamento que a homossexualidade vinha sofrendo nos meios trabalhistas (SOUZA, 2013, p. 107).
O jornal Lampião da Esquina como destaca Quinalha (2022) foi uma das mais paradigmáticas da imprensa LGBTI+, sendo destacada a amplitude que o periódico teve em diversas regiões do país, ainda que seu editorial pertence ao eixo Rio-São Paulo (QUINALHA, 2022, p. 107). A partir desse periódico, é possível conhecer parte das pautas e dos debates que membros do libertos estavam propondo. A partir dele, vamos destacar um pouco da atuação do grupo.
Na edição de Setembro de 1979, o Lampião da Esquina dá destaque ao surgimento de vários grupos homossexuais, sendo uma parcela desses do Estado de São Paulo. Dos grupos de São Paulo, o Libertos é mencionado como um dos grupos de recente atuação. O jornal então, publica um artigo assinado por membros do Libertos. No trecho da carta, é destacado a composição dos membros que compõem o coletivo, além de trazer um dado da quantidade de homossexuais presentes em Guarulhos naquele ano:
Em nosso núcleo, que pretendemos estender aos cinco mil homossexuais que acreditamos existir num município de 400 mil habitantes, temos todos os tipos: bem situados economicamente (acreditamos que pouquíssimos), classe média alguns, a grande maioria pobres, operários. Filhos de operários ou de trabalhadores que abandonaram o campo para vencer nas cidades. (O Pessoal dos Libertos (um balanço), Lampião da Esquina, Setembro de 1979, p. 9)
Não se sabe como o grupo chegou a esse dado, mas não deixa de ser interessante que os números demonstram o peso da população homossexual de Guarulhos nesse momento.

Nesse mesmo artigo, o grupo destaca o início da sua atuação com a participação de discussões sobre minorias marginalizadas, organizado pelo Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), e os desafios que têm sido enfrentados no começo da construção do grupo.
Os Libertos tinham uma atuação bem destacada na organização de encontros com coletivos e grupos homossexuais do Brasil. Uma série de demandas foram propostas pelo grupo, como aponta Rafael Soares (2013) em alguns desses encontros. Abaixo, listamos algumas delas, propostas por exemplo, para o I Encontro Nacional do Povo Guei em 1979:
• Criação do Congresso Estadual reunindo grupos de São Paulo
• Cobrança de maior atuação junto a jovens operários homossexuais
• Estabelecimento de estruturas nacionais do ativismo gay

No Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/UNICAMP), um documento com propostas lançadas pelo grupo para o I Congresso Brasileiro de Homossexuais, mostra as principais demandas e posições do grupo para organização do evento.


Proposta do Libertos de Guarulhos para o Primeiro Congresso Brasileiro de Homossexuais. 30 de Janeiro de 1980. Arquivo Edgar Leuenroth, Universidade Estadual de Campinas (AEL/UNICAMP)

Nas páginas do Lampião da Esquina, é possível identificar os nomes de alguns membros atuantes do grupo. Magal, José, Gilmar, Neide, Cláudio e Osvaldo Izidoro são alguns dos nomes ligados ao Libertos de Guarulhos que atuavam e auxiliavam na organização e na mobilização do grupo. Gilmar e Neide, por exemplo, estiveram presentes representando o Libertos na região que organizou o I Encontro Nacional do Povo Guei, realizado em dezembro de 1979 na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro. Das 60 pessoas de regiões como Belo Horizonte, Sorocaba e Caxias, os Libertos de Guarulhos estavam presentes. No evento, Gilmar e Neide apresentam propostas como um evento estadual, e falam sobre as características do grupo, destacando Guarulhos como uma cidade industrial e a composição de operários no coletivo ( Lampião da Esquina, janeiro de 1980). Magal e José representaram os Libertos na segunda reunião organizadora do I Encontro Brasileiro de Homossexuais, ocorrida na Fundação Getúlio Vargas no dia 3 de fevereiro de 1980 (Lampião da Esquina, março de 1980).
Osvaldo Isidoro escreveu uma coluna para o Lampião com o título “Rodando a Baiana” que traz algumas reflexões e posições do grupo:
Em nosso grupo” Libertos- Guarulhos” temos muitos homossexuais, bichas, trilha, e ninchas. A grande maioria são originários de classe baixa. Os comportamentos são variados. Há os que são conscientes e que têm propostas políticas. Existem aqueles que não conseguem exercer relação com o resto da sociedade. Há brancos racistas, negros racistas e o que é pior, negros raistas em relação à própria raça. Temos os que amam as plumas e daí para frente. O que não podemos, meus caros amigos, é sentarmos em cima do muro e ficarmos cobrando posição pública do pessoal. De ficar cobrando segurança? Qual é a contribuição que vocês têm dado para ajudar estes homossexuais alienados (de que vocês falam) e mesmo a própria esquerda-conservadora a enxergar um pouco além dos narizes? Vocês já questionaram a suas próprias consciências? É muito cômodo ficar na posição de enrustido bem comportado em quando à nossa volta o barco caminha em direção contrária ao nosso (Rodando a Baiana, O Lampião da Esquina, Setembro de 1979, p. 2)
Apesar do Libertos estarem ativos no movimento homossexual nacional, a atuação do grupo em Guarulhos é bem pouco conhecida. No Lampião da Esquina existem alguns indícios de lugares da cidade onde o grupo se reunia. No final de algumas edições do Lampião da Esquina, existia uma página com indicações de endereços para correspondências com a finalidade de manter contato com membros de vários grupos homossexuais. Dos endereços de correspondências para os Libertos, estão o CECAP e o Jardim Tranquilidade.

Ainda na década de 1980, os Libertos se unem ao Grupo Outra Coisa (GOC) e ao Eros onde constroem em conjunto, a frente Movimento Homossexual Autônomo (MHA). Os Libertos mantinham reuniões com os grupos para a organização interna do MHA. Nessas reuniões surgem uma série de iniciativas, sendo uma delas, os Cadernos do MHA. A publicação reunia textos, poemas e estudos que eram produzidos pelos integrantes do movimento ou de fora da organização. Um desses textos é de autoria de Cláudio Rodrigues, membro do Libertos que representava o grupo nas publicações do caderno. Nele, além de um poema que escreveu para a publicação do movimento, ele narra um conflito ocorrido na cidade com um membro da Convergência Socialista (CS). Ainda nos anos 80, Cláudio viria a ser assassinado de forma violenta em sua casa no dia 26 de junho. Quando foi acionada a polícia para identificar o assassino de Cláudio, o policial declarou que “se o rapaz era homossexual passivo, procurava a morte e a encontrou”3. Essa passagem revela a violência que homossexuais eram submetidos cotidianamente, seja na vida ou na morte.
O MHA na ampliação de suas redes de contato, recebia uma série de correspondências vindo de várias partes do Brasil. Uma dessas correspondências nos chama a atenção, por revelar a existência de uma outra organização ligada ao ativismo homossexual em Guarulhos do mesmo período: trata-se da Liga Eloinista. Vale fazer um breve resumo da história da organização e a relação dela com os Libertos.
Localizada no bairro de Vila Galvão, a organização sem fins lucrativos se dedicava a reunir homossexuais com a finalidade de orientar e dar assistência a comunidade, e tinha como presidente Daniel Franco. A organização era responsável pela edição do “Journal Gay International”, publicação que surgiu nos anos 1980 e divulgava as ações da Liga Eloinista como forma de difundir seu pensamento. De publicação mensal, o jornal também divulgava o endereço para contato com grupos homossexuais, incluindo o endereço dos Libertos. A redação do jornal ficava no bairro do Picanço e era composta pelo editor Antônio Emílio Teixeira Borges, do jornalista Vicente Roberto de Aquino, pelos redatores chefes Italo Bruno, Marlene Vieira e Pedro Rocha Nogueira, e Humbert Mehlig como colaborador da revista.
Posteriormente por volta dos anos 1980, James Green (2022) aponta que os Libertos de Guarulhos é um de uma série de grupos homossexuais que entram em declínio na chamada Primeira Onda do Movimento Homossexual (1978-1988), sendo encerrado ainda nos anos 1980 (GREEN, 2022, p. 486)
Esse artigo buscou de alguma forma, falar sobre o primeiro grupo organizado de homossexuais do município que lutavam pelo direito à diversidade sexual, ao direito de existir. Ainda que as fontes sejam bem escassas, é evidente que o grupo se destaca em muitos eventos e mostra sua força num momento de forte mobilização de homossexuais por direitos e por voz. O grupo Libertos de Guarulhos compõe uma parte das muitas histórias e trajetórias do movimento LGBTI + de Guarulhos que merecem ser revisitadas e resgatadas.
Arquivos e Fontes Consultadas
Centro de Memória e Referência LGBT+ Luiz Mott (CEDOC/LGBT+)
Jornal Lampião da Esquina
Edições:
Edição 16. Setembro de 1979
Edição 22. Março de 1980
Edição 20. Janeiro de 1980
Edição 23. Abril de 1980
Edição 32. Janeiro de 1981
Journal Gay International – Liga Eloinista
Arquivo Edgar Leuenroth, Universidade Estadual de Campinas (AEL/UNICAMP)
Fundo Grupo Outra Coisa (GOC)
Fundo Grupo Somos de Afirmação Homossexual
Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos Araci Borges Dias Martins (AHMG)
Acervo Fotográfico – Bairros
Referências
FACCHINI, Regina. Movimento homossexual no Brasil: recompondo um histórico. Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP), Campinas, v. 10, n.18/19, p. 79-123, 2003. Disponível em: https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/ael/article/view/2510
GREEN, James Naylor. Além do Carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2021.
QUINALHA, Renan. Movimento LGBTI+: Uma Breve História do século XIX aos nossos tempos. São Paulo: Autêntica, 2022.
SOUZA, Rafael de. “Saindo do gueto”: o Movimento Homossexual no Brasil da abertura, 1978-1982. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. 2013. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-13032014-113737/publico/2013_RafaelDeSouza_VCorr.pdf
- Para os propósitos deste artigo, optamos pela sigla LGBTI+ seguindo também o entendimento de Quinalha (2022) proposto para o livro “Movimento LGBTI+: uma breve história do século XIX aos nossos dias”. ↩︎
- A pesquisa de Rafael de Souza aponta que o grupo nasceu em 1980. No entanto, já existem publicações no Lampião da Esquina indicando a existência do grupo ainda em 1979, a partir de um artigo publicado nesse ano sobre o grupo. ↩︎
- Dossiê Material Bibliográfico, Fundo GOC. AEL/UNICAMP, sem data. ↩︎
*Artigo publicado com apoio da Política Nacional Aldir Blanc do Ponto de Cultura AAPAH – Memória, Cidadania e Patrimônio