Vila Fátima e a Ditadura Militar – Caso Nego Sete
*Artigo publicado com apoio da Política Nacional Aldir Blanc do Ponto de Cultura AAPAH – Memória, Cidadania e Patrimônio
A história do bairro de Vila Fátima se confunde com a história da própria Igreja, a de Nossa Senhora de Fátima, localizada na região. Erguida através de uma doação do terreno pela família Moreno, a igreja começou a ser construída em 1958 através de mutirões de homens e mulheres. Em torno da igreja, surgiu a ocupação do bairro, impulsionada por duas forças: 1) o crescimento populacional de Guarulhos a partir da década de 1960 com as fortes correntes migratórias de vários lugares do Brasil, o que não acompanhou o devido planejamento urbano por parte do município; 2) e as diretrizes do Concílio Vaticano II, que entre outras, estimulou as ações das pastorais, o ecumenismo e de aproximação com não cristãos, sendo o bairro da Vila Fátima uma região cânone dessas ações em Guarulhos. Esse caldo de cultura conformou a construção da Capela que ficava no meio da antiga Estrada dos Veigas.

A igreja, o bairro de Vila Fátima e os moradores foram testemunhas de uma das histórias mais sangrentas e absurdas na cidade durante o período ditatorial (1964-1985): a morte de Antonio de Sousa Campos na manhã do dia 23 de novembro de 1968 pelo esquadrão da morte comandados pelo delegado Sergio Paranhos Fleury.
A história tem um preambulo que conforma o surgimento do esquadrão da morte em São Paulo: a morte do investigador David Romero Paré. Membro da delegacia de roubos de São Paulo, ele foi morto em 18 de novembro de 1968, ao tentar entrar na casa de um suposto bandido, no bairro de Americanópolis, zona sul de São Paulo. Comparecendo ao enterro, uma multidão de policiais jurou vingança, atirando pelo alto, mesmo que a maioria não conhecesse o policial (COMISSÃO DA VERDADE ESTADUAL DE SP, 2016). Naqueles dias se iniciou a caçada a Saponga, responsável pelo tiro que matou o investigador. Ao fim do enterro, o juramento sangrento feito pelos presentes: para cada policial morto, dez pessoas seriam assassinadas. (SOUZA, 2000).
Para Percival de Souza, jornalista que contou a história do investigador Sergio Fleury, a caçada de Saponga conforma a primeira ação conhecida do Esquadrão da Morte em São Paulo. Importado do Rio de Janeiro, da chamada Scuderi Le Coq, o esquadrão da morte paulista teve uma característica pioneira: se tornar um laboratório para a Operação Bandeirantes, notória ação de combate a esquerda armada, financiada por empresários e amparada pelos militares, que alcançou seu auge durante os anos de 1969-1971. Hélio Bicudo, em depoimento à Comissão da Verdade Estadual de São Paulo “Rubens Paiva”, definiu o fenômeno do morticínio cometido por policiais da seguinte forma: ”A gente pode simplificadamente dizer que o fenômeno do esquadrão em São Paulo consistiu na execução de civis, de modo brutal e ritualizado, por policiais civis, entre aos anos de 1968 e 1971.” Essa mistura entre a caçada a bandidos comuns, o combate a esquerda armada e o rastro de sangue, se entrecruzou de muitas maneiras, tendo a figura de Sérgio Flueury como um elo comum.
Quem foi Nego Sete?
Quem foi Antonio de Souza Campos? Nos documentos não temos informações conclusivas sobre quem era Nego Sete, apelido pelo qual Antonio de Souza Campos era conhecido. Se de fato era um criminoso, suposto membro de gangue, assaltante ou delinquente. Ou talvez um trabalhador, voltado aos seus afazeres e suas “correrias”. Não há uma informação taxativa sobre essa condição mesmo no depoimento de terceiros. Em trecho que consta no livro Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte, Helio Bicudo ao colher o testemunho do Padre Geraldo Monzeroll, reafirma que Antonio de Souza Campos havia alugado dois cômodos em um cortiço cujo dono era Zé Botinha, na Avenida B, hoje atual Rua Padre Cláudio Arenal. E mais, Nego Sete era também um homem preto, de quase 30 anos que havia alugado uma casa para morar com uma mulher. Essa mulher não teve seu nome registrado nos autos, mas conforme os depoimentos dados no processo, ela também foi torturada e colocada em cárcere privado pelos policiais.
Em 23 de novembro de 1968, os policiais comandados por Sergio Fleury chegaram ao bairro da Vila Fátima com o objetivo de vingar o investigador Parré, mas atrás de um suposto membro da quadrilha do Saponga que ainda continuava sendo procurado. Sem nenhuma prova ou mandado judicial, os policiais estacionaram o carro defronte a antiga Igreja da Vila Fátima. O padre Geraldo num ato de coragem para aqueles tempos perguntou aos policiais por que tudo aquilo, ao que responderam estarem atrás de Nego Sete. Nesse momento e acreditando ser aquele o Esquadrão da Morte do qual já se comentava, o padre começou a fotografá-los, pois estranhou aquela movimentação com homens fortemente armados no pacato bairro. A imagem da capa de página da Revista Manchete revela aquilo que o Padre Geraldo fotografou naquele dia 23 de novembro de 1968, mostrando a movimentação dos policiais na porta igreja.

Polícia vasculha casas na Vila Fátima
Os policiais ficaram o dia inteiro ali. Entraram, por engano, na casa de Antonio Marques e sua esposa Ana Anita Marques, acreditando se tratar de Nego Sete e sua mulher. Agrediram a esposa e levaram o marido para a delegacia, sob chuva de pancadas. Ao identificar a casa de Nego Sete e o erro cometido, liberaram Ana Anita do cárcere privado e levaram Antonio Marques ao presídio Tiradentes, onde ele ficaria preso alguns dias. Posteriormente, tanto ele como a esposa iriam depor em juízo contra os comandados do delegado Sérgio Fleury.
Outro personagem dessa história foi João Batista Oliveira, o Zé Botinha, dono do imóvel localizado na Rua Padre Cláudio Arenal, n.30, onde residia Nego Sete. Aprisionando o proprietário do imóvel durante todo aquele dia 23, os policiais adentraram na casa alugada pelo suposto membro da quadrilha de Saponga, novamente sem mandado judicial ou coisa que o valha. Ali a companheira de Nego Sete aguardava a chegada do rapaz, os membros do esquadrão da morte esperaram a chegadadele com quatro policiais dentro da casa. No depoimento ao procurador Hélio Bicudo, Padre Geraldo Monzeroll demonstrou novamente coragem ao detalhar os últimos momentos de Antonio de Souza Campos:
Nego Sete chegou mais ou menos as 16h15 horas e desceu em frente a padaria Santo Onofre. Estava com um outro companheiro, falaram um momentinho perto do ponto, seguiram a pé a avenida Otavio Braga de Mesquita em direção a Vila Flórida, por uns cem metros depois se separaram, o acompanhante indo para a Vila Flórida e o Nego Sete entrando num bazar na avenida mesmo. Depois de uns quinze minutos, saiu lentamente, pegou uma travessa, chegou a Avenida B (…) ele tinha uns 60 metros a andar até a casa dele se encaminhou para lá, mas naquele momento um dos membros gritou para ele: para, polícia! Nego Sete saiu em disparada, correu até a casa dele, abriu a porta e foi fuzilado a queima roupa pelos quatro elementos. (SOUZA, 2000, p. 156)
Delegado Fleury e seu modus operandi
Tocaiado pelos policiais, Nego Sete foi alvejado com 12 balas e teve o corpo recolhido pelos policiais em um cobertor velho. Consta nos autos que Fleury ordenou aos donos da casa – até então sob custódia ilegal da polícia – que lavassem o corredor ensanguentado e que queimassem os pertences de Nego Sete. Nunca mais se teve notícia da mulher que morava com Antonio Souza de Campos.
O caso foi levado para a polícia de Guarulhos que recomendou ao envolvidos no caso (João Batista Oliveira, o Padre Geraldo e Ana Anita Marques) que não fossem mais atrás e ficassem calados quanto ao que viram. O caso chegou ao Ministério Público do Estado de São Paulo que na ocasião investigava a atuação do Esquadrão da Morte em 1970. Quando Sergio Fleury e seu bando foram denunciados pelo Promotor Hélio Bicudo em 1971, o esquadrão da morte já era o queridinho de parte da imprensa (radialistas e jornalistas), além da população paulista que ignorava boa parte dos casos de horrores infligidos as vítimas, inocente ou não.
Sérgio Fleury levou o modus operandi de tortura e assassinatos às organizações da esquerda armada, tendo em seu currículo o assassinato de Carlos Mariguella em 04 de novembro de 1969. Sendo premiado e agraciado pela sociedade paulistana, os casos de abusos de Fleury vieram a tona: para além de assassinatos, as extorsões, sequestros, proteção a traficantes, estupros e violência de toda a natureza o tornaram alvo de denúncias. No livro Autópsia do Medo – Vida E Morte Do Delegado Sergio Paranhos, o jornalista Percival de Souza dissecou a figura de Sérgio Fleury, atribuindo a ele uma série de abusos e horrores cometidos pelo agente da repressão.
O julgamento do Esquadrão da Morte foi um marco na luta contra as violações de estado, levando ao banco dos réus os responsáveis pela morte de Nego Sete. Após a denúncia em 1971 e durante os tramites do julgamento de Fleury, o Padre Geraldo foi atacado por Ademar Augusto de Oliveira, mais conhecido como Fininho, outro notório assassino do Esquadrão da Morte. Jogado de um andaime, o pároco ainda sobreviveu, mas precisou se refugiar no Canadá. Retornando o Brasil, e especificamente a Guarulhos, Padre Geraldo foi um dos mais animados incentivadores da Pastoral Carcerária na cidade, juntamente com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) com outros padres e religiosos. Contribuiu também para o Centro de Direitos Humanos de Guarulhos “Pe. João Bosco Burnier” (CDDH-Guarulhos), inaugurado em 1985. A sua luta e seu ativismo ligado aos direitos humanos foi apresentada em artigo escrito por Rodrigo Rabelo, intitulado Quando memória material e documentação popular importam: esquadrão da morte na ditatura, testemunho de uma igreja na redemocratização do Brasil e intentonas golpistas. Faleceu em 1999.
Julgamento e impunidade
Mesmo denunciado, com fartas provas e sendo julgado em Guarulhos, no fórum da Comarca que ficava no Casarão José Maurício, o delegado não cumpriu nenhum dia de cadeia. A famigerada “Lei Fleury” de 22 de novembro de 1973, que impedia prisões desde que os acusados tivessem bons antecedentes, protegeu o delegado Sérgio Fleury de ser preso e condenado. Agraciado com honraria por dois governadores de São Paulo, Abreu Sodré e Laudo Natel, no seu julgamento se identificou 41 execuções, as quais 22 delas tiveram a participação do delegado. O caso ainda teve o afastamento do promotor Hélio Bicudo e posterior cancelamento do júri, graças a uma forte reação da Ditadura Militar que interveio de várias formas no Ministério Público e realizou uma perseguição ao promotor do caso. Fleury morreria em 1979, em um caso nunca solucionado e atribuído como “afogamento”.
Para assistir: o documentário “Você também pode dar um presunto legal”, de Sérgio Muniz tem como um dos motes o assassinato de Nego Sete. O documentarista teve a ideia de fazer algo que retratasse a ação do Esquadrão da Morte. Produzido em 1973 e proibido no Brasil, só foi recuperado e conhecido do público em 2006. É um documento vivo do período.
Referências:
RELATORIO DA CEV, SÃO PAULO, 2015
BICUDO, Helio. Meu Depoimento Sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo : Martins Fontes. 2002 : Globo. 2001
RABELLO, Rodrigo. Quando memória material e documentação popular importam: esquadrão da morte na ditatura, testemunho de uma igreja na redemocratização do brasil e intentonas golpistas. Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, [S. l.], v. 29, p. 1–47, 2024. DOI: 10.5007/1518-2924.2024.e99284. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/eb/article/view/99284. Acesso em: 7 abr. 2025.
SOUZA, Percival de. Autopsia Do Medo – Vida E Morte Do Delegado Sergio Paranhos Fleury. Rio de Janeiro