“Moti”, estou aqui
No dia 03 de dezembro assisti no Sesc Guarulhos o filme “Moti”, dirigido por André Okuma, cineasta guarulhense e do mundo. A experiência teve várias camadas para pouco mais de quinze minutos de duração. Vi o filme com um misto de expectativa pois acompanhei um pouco a jornada de André na preparação da película, sobre o que gostaria de filmar e como contar a história. Após a aclamação dos aplausos, saí da sala com a certeza do sucesso e de que vi um filme capaz de furar a “bolha” guarulhense, embora seja importante destacar que o filme traz uma estética própria do cinema local, o cinema de Guarulhos, mais do que em Guarulhos. Mas tratemos das camadas.
O filme narra um episódio vivido por uma família de migrantes japoneses. A história é centrada numa personagem, a vó Nami, ou a batchan e os seus netos, Jun e Midori. O pano de fundo são as eleições de 2022 e todos os desafios conhecidos que ressoam até hoje. O roteiro transcorre por uma tarde, a daquelas eleições, mas as memórias da vozinha nos levam a nuances da segunda guerra mundial, ou precisamente, aos dias após as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki e a rendição incondicional do Imperador Hirohito diante dos americanos em 1945.
A história real entre os Makegumi, também conhecidos como “derrotistas”, acusados de traição à pátria por acreditarem na derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, e os Katigumi maioria da colônia japonesa no Brasil e que acreditavam na vitória do Japão na Guerra, atravessa a família da batchan e são reavivadas em 2022. A segunda guerra mundial e as eleições como alegorias são trazidas para o drama que a família estará mergulhada. Ao mesmo tempo a fragilidade da pessoa da batchan se rivaliza com a sua memória, fragmentada e incerta como a visão de um objeto olhado através do copo, porém firme no que diz respeito aos desafios de um mundo em que as narrativas e opiniões parecem imperar sobre os fatos, de 1945 à 2022.
Como um filme de Guarulhos, somos levados as referências da presença japonesa na cidade, imersas sobre a cercania do aeroporto representado por um avião que passa. Temos a sóbria praça Kasato Maru, desconhecida para alguns, como dizendo estamos aqui na periferia da cidade. E é disso que o filme também trata, pois temos uma configuração familiar comum a muitos brasileiros: netos sendo criados pela avó em uma residência simples em um bairro periférico. A direção de arte e de fotografia são impecáveis nas escolhas que representam essa paisagem.
E como é acertado falarmos da família. Ou de famílias. E essa camada me fez lembrar do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, que revelou ao Brasil como a ditadura militar (1964-1984) não se resume a atuação de militares no poder e da esquerda armada como oposição. Famílias foram atingidas de formas diferentes. Entender como a história atravessa as famílias não nos diz necessariamente sobre um grande episódio histórico e seus personagens, mas como os dilemas de katigumis e makegumis ocorrem em sintonias e motivações diferentes em todos os dias. Os impactos da história vão e vem e no geral percebemos quando sentimos na carne, para o bem ou para o mal. Fernand Braudel em O Mediterrâneo dividia a história em longa, média e curta duração. O tempo individual, o presente, os acontecimentos e os eventos efêmeros seriam de curta duração. O que temos em “Moti”, mas também em “Ainda estou aqui”, é o tempo sendo atravessado e rasgado por subjetividades cindidas e o que parece ser de curta duração se mistura ao que é de longa duração, criando uma unicidade como na música tocada ao acompanhamento de um Shamisen, violão de três cordas japonês.
Isto é, há um mundo que parece impenetrável e que chamamos de história de longa duração, acontecendo como se não a sentíssemos. Mas que de repente como uma bomba sobre as nossas cabeças ou um tiro ela vem nos dizer “eu estou aqui e você também’.
O filme de André Okuma – me perdoe a deferência, nos leva a essas camadas: família, conflitos, histórias, afetos e comida. Sim, o moti é um bolinho tradicional japonês de arroz e ao que parece combina bem com um café. Okuma usa e abusa das alegorias para tratar dos dramas que nos parecem tão familiares e tão difíceis de serem compreendidos e temos que agradecê-lo por fazer de uma forma tão bela, sensível e singular.